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PORCOS QUE CHAFURDAM NO XAMPU

Por Joana Coccarelli

Author: Joana Coccarelli
Date: Mar 1, 2004
Views: 3481

O festival corria lindamente naquele belo pico em Pirenópolis, Goiás, durante o Carnaval. Num discreto cantinho do rio que cortava o terreno, um velho morador local lançou a isca na água, cravou a vara de pesca na terra e sentou-se ao lado com seu chapéu de palha. Um idílio bucólico – ou quase. Instantes depois, três moças puseram-se a se ensaboar, escarrar pasta de dente e enxaguar os cabelos na correnteza. A abundante espuma branca enegreceu a harmonia verde. Frente àquilo, o pescador recolheu seu anzol e foi-se embora.

Na manhã anterior encontrei Catarina no chill-out, indignada por ter testemunhado cena semelhante àquela. Assim como fazia minha amiga, tomei como obrigação alertar as desavisadas sobre a porcaria que o asseio in natura representava para aquele pedacinho de ecossistema. Como usei de toda a minha polidez para abordar as meninas, e diante da obviedade do aviso que eu estava dando, esperava que admitissem o erro ou que manifestassem interesse em evitar repetir a mancada. Que engano. As três me olharam com desprezo e, enquanto uma apertava o frasco de esfoliante para peles secas, a outra alegava que faltava água nos chuveiros do acampamento.

Um rapaz coberto de sabonete disse, “mas essa espuma não é esgoto”. Outro, que bochechava com Listerine, fingiu que não ouviu, deu sua cusparada derradeira e saiu de fininho. Uma moça, de bonitos cabelos louros, ensaiou um olhar quase desesperado e exclamou, “Mas eu tenho que tomar um banho antes de ir embora para São Paulo, são quinze horas de viagem!”. Ninguém, absolutamente ninguém se tocou. Todos continuaram derramando espuma e muito mais espuma na água. Eu apelei para outro argumento: e se o pessoal que está acampado rio acima também estiver se lavando com sabão? Estaremos todos mergulhando nos detergentes dos corpos de outras pessoas! O garotão tatuado deu de ombros: “Não tem mais ninguém acampando além daqui onde estamos, meu sabonete não vai incomodar”.

Isto porque ele acha que o mundo só vai até onde seus olhos alcançam. Prefere ignorar que o rio segue muitos quilômetros adiante, servindo povoados que nem sabemos que existem. Talvez a própria população da Pirenópolis que acolheu nossa diversão utilize aquilo que os porcos do trance transformaram em ralo.

Quarenta minutos mais tarde a loura bonita entrava no Audi do namorado e deixava a festa. Então recobrei a lembrança de que as minhas discussões infrutíferas não estavam sendo travadas com pessoas ignorantes, sem oportunidades, mas com gente que desembolsou cerca de R$500 para estar naquela festa, entre ingressos, alimentação e os muitos litros de gasolina exigidos. São exatamente os jovens que daqui a muito pouco estarão no poder – cadeiras de executivos, redações de telejornais, círculos acadêmicos; são exatamente as pessoas que poderiam começar a fazer a diferença.

Nota zero para a produção da festa, que simplesmente cortou o fornecimento de água na quarta-feira de Cinzas, para “expulsar” os últimos celebrantes. Mas em hipótese alguma isto justifica uma única gota de sabão no rio. Alguém aí já ouviu falar em bucha vegetal? Junto com água pura ela garante uma boa limpeza corporal. E esse povinho que se fantasia de roots, de gnomo ou de índio, não consegue passar um dia sequer sem sabão? Onde ficou o despojamento e o naturalismo tão reverenciados pela cultura trance?

Por toda a parte, placas com frases ecologicamente corretas. Se a produção acha que assim garante o comprometimento do público com atitudes idem, sinal de que não conhece aqueles que freqüentam seus eventos. A conscientização precisa ter muito mais impacto. Tem que vir escrito no flyer, tem que ter folheto explicativo na entrada – quem sabe uma pequena multa para o porcalhão infrator? No último dia era um tal de saco plástico enroscando nas árvores, pilhas desaparecendo na terra, lixo orgânico cheio de moscas.

No caminho de volta para casa eu e meus amigos nos lembrávamos dos bons momentos do festival, apesar dos pesares. Sonhando, imaginamos uma celebração no meio do Pantanal. Só em sonhos mesmo: quem seria o criminoso que ousaria levar os porcos que chafurdam no xampu para o meio daquelas maravilhosas terras alagadas? Quem teria a coragem?





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